Quem conta um conto...

Quantas contas já deixei pelo caminho!
E cada uma conta um pouco sobre mim.

Pois cada um que no caminho as encontra
Versa um conto meio louco sobre mim.

Cada qual pensa que sabe o que não sabe
E vão somando cada conta até o fim,

Contando tudo e um pouco mais do que não cabe
Construindo-me um colar pesado assim.

Pesa tanto que já ando encurvada,
Contando os frisos do solado que caminho,

Juntando as contas em um fio de puro nada
E rindo junto do falar que não confio.

Poeta da noite

Para meu amigo Everton

Quem poderia misturar melhor
num caldeirão de pensamentos
três pás de vento,
Três tons de mal,
dois mais de um pessimismo seco
e uma veia tensa de um romantismo negro
que faz nascer daí um texto:
pergaminho sempre vivo e surreal.

Cabo das tormentas

(cemitério de navios)




Eu quero que a água que trouxe

Leve de volta.

Pois desde sempre recolhi na beira

Os pedaços de tudo que a maré

Carregava enjoada e revolta.


Eu nasci na cidade das águas

Onde mar tem trazido os destroços de si.

Recolhi cada qual como o nada,

Cada um como um pouco de mim.

Mas não pude evitar a chegada.


Quando formavam de todo um navio

Colocavam-se em pé sobre a água,

E partindo sem dó nem parada

Só deixavam comigo um vazio

E uma voz em tormenta velada.


Que leve de volta

E na volta não morra tão calma.

Pois que eu que embalei a jornada

Já não tenho mais força nem alma

Para juntar os pedaços de mim.

Ando

Não perguntes como eu vou
porque não tenho resposta.
E cada dia que passa
é menos um deles.

Caminhar pela rua sozinha
traz uma sensação estranha
que a muito tempo
meu ser não sentia.

É um passo em liberdade
mas um passo com saudade
de outras vozes, outras vidas
que ficaram pelos bancos da cidade.

Meus Deus!
Aonde vão esses meus passos?
Que mulher perdida
esse meu tempo fez de mim!

Entre Freud e Kant


A salvação a qual procuro
Não mora numa casa ensolarada
Mas num quarto sempre escuro.

A salvação a qual procuro
Não reside em prece, em carne morta;
Mas em ter um tal controle do impulso.

A salvação a qual persigo
Nada tem a ver com aqueles
Que se julgam merecedores de outro céu,

Nem com a vida em cativeiro,
Nem com a morte em redenção,
Mas sob a liberdade de escolha
Que ocupa toda a forma pura de razão.

Sou apenas Um

Para Rafael Orcelli
Seu eu não fosse Tu
Já não seria apenas Eu.
Pois meu espírito se funde
Na tua paz, na tua luz,
E nalgum momento se mistura
E se confunde com o teu.

Se eu não fosse tu
Meu tempo não seria meu.
E meu ser já não teria mais espaço.
Pois pelas velhas ruas onde passo
Não caminho cega e nua,
Caminho agora em firme passo.

Se eu não fosse tu
O amor que tenho não seria teu.
Seria de qualquer que visse a pele nua,
Que confunde o corpo e a mente.
Pois se me defino tua simplesmente
É porque me faço em tua alma plenamente.

Diário

Muitas coisas passam
Ali onde os meus pés se passam.
E entre as coisas que caminham
Um pensamento fixo se encarrega
De fazer a mente fria e dolorida.

Não sei por onde a vida vai,
Mas tenho tido medo do futuro,
Das idéias descabidas,
Das pessoas coloridas
E das feridas que não curo.

Quando o sol nasce tão baixo
O dia é sempre todo baixo,
O dia é sempre todo cinza.
E as folhagens se acumulam
Na calçada que não tem pazinha.

Quando sinto a vida assim
– E tenho sentido há muito tempo –
É que me vem à mente o velho pensamento:
Meus Deus,
Será que eu ainda tenho salvação?

Diário II


Quando eu era mais novinha
Achava que as coisas
Se encaminhavam pela vida,
Que voavam como o vento
Que se partiam sozinhas.

Mas o tempo me passou!
Levou aqueles que eram bons,
Deixou alguns quase tão bons,
Trouxe de volta velhas dúvidas,
Sob a lente sempre nova da idade.

Puts!
Eu pensava que estar em crise
Era coisa manhosa de gente nervosa.
Mas não sei se é bem verdade
Que as ideias que caminham sozinhas
Voltam mortas com tempo.

Eu sei


Um disparate,
Um desatino:
Um chocolate,
Um capuchino.

O problema
De ser ensimesmado
É que a gente acredita
No que imagina:
Misturando o concreto
E o abstrato!

(...)


Não conto mais as notas,

Não conto mais as sílabas.

De que me adiante a matemática

Se o que eu quero mesmo é prática

É misturar o som, a voz e a vida?

Canção

Entre as notas e as partituras;
Entre os cadernos e as escrituras;
Entre os meus lábios e as coisas tuas
Vai correndo lenta a minha vida impura.

Ah, o prazer de te ver e viver apenas,
De desperdiçar as horas e o dia
Em qualquer coisa ou fantasia,
Em qualquer Dó que valha a pena.

Pois não há metáfora ou veia nua,
Não há culpado ou mea culpa
Neste caso, nesta viva, nesta música
Que é mais minha do que tua.

A rosa do jardim


Há sobre a mesa um velho par de óculos
Daqueles que se esquecem dos ouvidos.
E tal melancolia vem e me alcança
Que já não sei se choro, não sei se rio.

É que nos olhos daquele que é cativo
Uma medonha semelhança se incendeia
E faz correr o sangue forte pela veia
E faz voltar aquela voz da qual eu vivo,

Que diz que a moça é torta e criminosa,
Que não caminha como as outras,
Que é chorosa e meio louca
E que é da vida a sina de ser rosa.

A música parou?




Violino parado,

Pensar agitado,

Cadeira vazia,

Cantar esgotado,


Não há um só dia

Que essa luz de guia

Me faça ir dormir

Sem querer poesia.


Pois ando parado

Todo ensimesmado,

Co’as mãos muito frias

Pensando calado.


Sou deus estragado,

Não crio, não mato.

Só penso vazio:

Canto, danço... Caio.

Ver o Tempo

Caminho entre a gente
Porque me pareço com a gente.
E meus passos são de guerra,
Minhas vozes são de cólera
Meus algozes, frios e fortes.
Minhas lutas são de morte.

Não temo frio, não temo vento.
Temo a algema e o passar do tempo
Que por vontade ignorante
Fez cair no esquecimento
O que é de nós vontade pura
E o que nos deve o pensamento.

Fluir, correr, voar.

Se te mata a vida

Com o peso de ser,

Perdido no tempo

Sem tempo de estar,


Enterra o teu lado

Que tudo quer ter.

E foge do mundo

Que mata o pensar.


Vai sentir o vento

Que passa a dizer

Que a vida é bem mais

Do que se acumular,


Que há muito mais

Que se possa viver

E com a verdade

Tu vais te encontrar.


Levanta contigo

A poeira no ar,

Te deixa fluir

Como a água do mar,


Dá voltas no mundo

Pra não mais voltar

E só leva contigo

O que gostas de ter.


Vai, deixa o destino

O teu passo guiar.

Dá as costas ao vento

Que vai te empurrar


No passo descalço

Para não te encontrar

A vida pequena

Que mata o teu ser.

Quem sou eu

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Sou o verbo: o estado, o tempo e a ação contínua.

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