O gato

O gato cruza o quarto.
Silencioso como uma nuvem,
observa-me como quem sabe
dos pensamentos turvos e inconciliáveis
que somente em minha mente cabem.

Hesita e para por um momento.
Fita-me com os olhos do azul
mais profundo do fundo do mar
e com a curiosidade felina
que por um instante perdem-se no ar.

Neste último ano de casa vazia,
tem sido minha mais nobre
e constante companhia.
Mais do que gente,
bastante amigo e presente.

E é sempre nestes raros momentos
quando mergulho nos seus olhos
sérios de mar
que percebo rapidamente
a natureza aguçada,
muito além do qualquer humano
Pensar.

A janela dos olhos

A beleza um dia eu vi,
Passou por mim numa tarde amarela;
Andava com as mangas puídas
E o coração partido,
Mas ainda assim muito bela.


E se fez um espelho de mim,
Na luz clara que dourava a janela
Vi a tristeza mais densa, assim
Da melancólica beleza juvenil.
E nada se aproximava dela.

Declaro "paraguas"

Hoje declaro minha morte.
Morro sem dó nem rancor,
Morro de morte pensada
E de uma conversa marcada
Na falta da prova indolor.

Morro da verdade inventada
E por mim tantas vezes querida;
De uma idéia de juízo tolhida,
Sem pé, nem cabeça, nem nada;
De uma idéia que me enganava.

Não sei se mais mata o engano,
Ou a tolice que antes me consumia.
Se a questão que agora me arrasa
É a certeza da palavra vazia,
Neste instante me quero sensata.

Não procuro mais exatidão.
Quero franqueza comigo mesma;
Sobre um desejo que castiga e mata,
Que diante da morte não cala
Mas no meu pensamento se acaba.

Sei que morrem as idéias
E vão morrendo com os dias
E com elas outros valores;
Valores que outrora queria;
Queria porque calavam amores.

Oportuno tempestiva

A longa planície sustenta a paisagem verde
iluminada pela tempestade que revela sua sede.
Na altura do horizonte a larga coluna de pinheiros
guarda o espetáculo que se anuncia ao fim do dia.

Chove.

Ao fundo, o sol se esforça para ultrapassar
a espessa camada de nuvens cinza.
Uma imagem assustadoramente fascinante,
um belo quadro em fresca tinta.

E o vento zangado assobia grave
pelas frestas das janelas entreabertas,
enquanto um raio azul
despedaça o céu constante e nu.

Chove.

Meu espírito reside na beleza violenta das tempestades,
que assim como eu não são de uma só intensidade.

Observo calada, alheia ao tempo
e vazia da alma levada por um vento.
Não distingo mais nada do caos que é

natureza, alma e momento.

Meu Blues em Lá menor

Há um cara tocando viola
Dentro da paisagem cinza carmim.
Está tocando e pedindo esmola,
Está tocando bem longe de mim.


Vai tirando seu som na viola
De pegada firme, densa e grave
Desenhando um arranjo suave
Arrancando suspiros de mim.


Hei cara,
Toca um Blues aí para mim.
Ele para e responde assim:
Vem cá, moça,
Vou cantar o que é Blues para mim.


De espírito vagabundo e arruaceiro
Vou mostrar o que o mundo não quis.
Viajei pelo mundo inteiro
Cidadão sem fronteira ou país.


De superstições ordinárias vivi,
Tantas esquinas e vidas entortei.
E a única prata que tive apostei,
Pelos cantos do mundo perdi.


Pelo amor da mulher eu sofri
E as estradas do mundo trilhei.
De um destino vadio que sou rei
Trago o coração azul que ela não quis.


E por isso eu te digo moça,
Queres um Blues que não seja vazio?
Queres um homem para tirar-te o frio?
Vem comigo, eu te levo comigo.

Filósofo de pedra

Deixo o tolo do momento
Que utiliza como escudo
O mais torto sentimento
Disfarçando seu murmúrio.
Quando pego põe-se mudo.

Deixo a gente tão vulgar,
Que me cobre de pesar,
Caminhando sobre o mundo.
Deus me livre deste mar
Que não quero estar no fundo.

Deixo o sábio adormecido
Mergulhado na vaidade,
Triste busca de Narciso
Que não muda com a idade
Nem diante d’um abismo.

Deixo a bela esmaecida
Que cultua e apetece
Sua carcaça emagrecida.
E entre os tolos oferece
Sua beleza apodrecida.

Disso sempre vale à pena
Discordar sem medo ter:
Que a fortuna é moça má
E não coroa quem com ela
Toda noite vem dançar.



Das mentiras

Há resquícios de uma história muito bela,
mas inúmeras vezes mal contada.
Contarei apenas que rompi uma ilusão
e com ela minha vida imaginada.


No brasão da hombridade vi pousado
um abutre travestido de colomba.
(bela forma de enganar-me!)
E na sombra do brasão vi espalhado
o mais triste sentimento de desonra.


E qualquer que aqui chegar também dirá
que as mentiras não morrem pelas pernas,
caminham sempre muito longe.
E àqueles que a mim desejam o mal
Boa Noite.

Quem sou eu

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Sou o verbo: o estado, o tempo e a ação contínua.

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