Ler em silêncio

Diz sem dizer,
Fala sem falar.
Pois sobre a garganta muda
se acumula um peso,
Uma pesada mão invisível
Que lhe faz até o soluço calar.

Nos mais profundos olhos
Marejados de cinza
Lampejam raios de prata,
Navegam barcos de tinta
Que o silêncio, de todo,
Já não os pode amparar.

Não é o medo
O que pinga entre os dedos.
É o acumulo do tempo,
A razão partida no meio,
O brotar d’uma ruga suave
Que a idade não pode explicar.

E nem a ideia falha
Se basta naquele momento
Em que a tempestade faz curva,
Em que a ventania faz vento
E que a alma frágil se parte
E se revolta toda por dentro

Espelho mágico

Tu és a sombra de uma folha
Que morreu no meu jardim,
Um reflexo falso de outra coisa
Que tão somente o nome
Já morreu dentro de mim.

De tristeza em semelhança
Vou contando os velhos traços
E juntando cada caco,
E contando cada posso,
Para formar o espelho mágico.

Que estranheza que me causa!
Ver um cravo do jardim
Refletido assim sem aço
Bem diante assim de mim.
Mas garanto que isso passa!

(...)

Meu coração é vagabundo
como o velho vento sem parada,
e caminha cego pelo do mundo,
e volta toda noite pela mesma estrada.

Toda o dia eu me mudo
e
vôo longe arrancando o que não tem raiz,
e levo em mim qualquer caco sem fundo,
e trago em volta a luz de um céu de
anis.

Pequena crítica social

O pombaredo pousa na calçada
E estala o bico pelo chão
E espera à pena pela fome,
Espera o milho pela mão.

Não fosse o velho ali parado
A escutar o som do pombaredo,
Não haveria ali a culpa,
Nem haveria ali o medo.

Enquanto uns se alimentam
Um outro espera pela mão.
E livremente observa sob o banco
O que se espalha livre pelo chão.

Se é possível haver comparação
Já não sei quem não é livre,
Se é quem voa leve pelo céu
Ou se é quem vive mudo pelo chão.

(...)

O meu corpo ainda treme
da friagem que peguei durante o dia.
E entre meus lábios cortados se
espremem
outras vontades, outros gostos de agonia.

Basta que veja um desses corações antigos
para que meu coração que é sempre ativo
em violeta volte a se inflamar.

Basta que os passos que ressoam sobre o piso
conforme avançam em desatino
Venham soprar minh'alma à congelar.

Desenhista

à Juliana Castro

Sobre a folha quase branca
Corre um traço em fino tom.
E vai e volta e forma um rosto
Sustentado pela mão.

A luz passeia pelo rosto
E faz contorno pela sombra.
E vai e volta e se contempla:
Quer ver melhor a posição.

Quem pinta assim a folha
Sabe bem quando acabar:
No traço leve em mão suave,
Faz um arco para aparar
A escuridão do seu grafite
Ali no canto...
Onde a sombra vem se desmanchar.

Quem sou eu

Minha foto
Sou o verbo: o estado, o tempo e a ação contínua.

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